sexta-feira, abril 26

Livre

 

Digo-me livre, e minto, fingindo que não vejo as grilhetas que me
ferem, os laços de seda que apertam como fios de aço. Vou por onde
outros querem que vá, deles a escolha, meu o cansaço da jornada, o
desatino de ignorar a meta, se é que de facto, como eles juram, se
encontra uma ao fim de tantas léguas.
A minha suspeita é de que não há meta nem propósito, só ca-
minho, e o que julgamos vida talvez seja apenas a transumância de
um colossal rebanho, a busca fútil de um destino imaginado.

 

quarta-feira, abril 24

Cabeças

 

Cada cabeça tem direito à sua sentença, alturas há em que uma noite mal dormida leva a mudar de ideias, para não falarmos das consequências da azia ou da má digestão duma chanfana. Por
conseguinte, pense cada um como bem deseja, e alegremo-nos de que não nos obriguem a olhar todos para o mesmo lado.
Há, porém, ocasiões em que esta minha indulgência se arrebita, leva a franzir o sobrolho e a perguntar-me se o outro tem de facto a razão que pensa. Vem isto a propósito da afirmação recente de uma das cabeças pensantes deste país sobre como, além de danoso para a economia, o
ensino é supérfluo.
Claro que o recebeu ele, e bom, mas o zé-povinho é melhor que não deixe subir a tontura à cabeça, não se meta em filosofias nem ciências, dispense Bach, desista de querer subir a cimos onde não pertence.
Aprenda ele um ofício e ensine essa humildade aos filhos, lembre-lhes que a cada macaco se destina um galho, e para benefício dos que aprenderam é melhor que os outros fiquem pelo chão.

 

 

terça-feira, abril 23

Culpa

 

Culpa tenho eu, bem sei, deste desalento que me empurra para
a solidão e entristece, o desejo de evitar o semelhante, o repisar de
momentos que afinal não foram como pareciam, de amabilidades e
sorrisos que, ao recordá-los, surgem com expressão diferente, o afas-
tamento revelando a máscara, pondo a descoberto a grima, o aze-
dume, a falsidade, a cobardia.
no dia-a-dia correspondemos mal à imagem que mostramos
ou à que do semelhante desejamos ver. Contudo, não haveria aí em-
peno, tanto nos habituamos ao teatro que a vida é, e em cujo palco
somos razoavelmente capazes de representar o papel que ela exige,
que de nós esperam, ou a que nos obrigam.
Do que não nos curamos, pelo menos eu não me curo, é da in-
capacidade de nos protegermos de nós próprios, de escaparmos àque-
le que no íntimo, guardião permanente, nos impede de esquecer e de
enfeitar.