terça-feira, janeiro 22

Bichos

É geralmente sabido que, em países como em Portugal, os animais não levam uma vida fácil. Mesmo os que têm dono. O burro apanha pauladas quando se não apressa, ao cão que ladra demais é normal dar pontapés, pobre do gato que se torna incómodo ou preguiça na caça ao rato: rua com ele. E por via de regra, o pombo-correio menos capaz de bater recordes acaba simplesmente na panela. Pelo que não é preciso grande esforço para imaginar o destino dos animais vadios e os que, livres na natureza, vivem ao alcance da fisga e da caçadeira.
Com aplauso dos próprios pais, que gostam de vê-los crescer destemidos e ágeis, para os rapazes é um gosto subir ao perigoso cocuruto das árvores e tirar dos ninhos os filhotes ou quebrar os ovos.
Os caçadores, esses, se lhes faltam perdizes ou coelhos, disparam à toa contra tudo o que diante dos seus olhos voa ou corre. Passo por alto outras crueldades que, embora pertencendo aos costumes, sempre me pareceram próximas das doenças mentais.
Pessoalmente, salvo a hostilidade contra algumas ordens menores (continuo a matar moscas, mosquitos, aranhas, vespas e varejeiras) e uma repugnância congénita pelos ratos, creio que me posso apresentar sem receio diante do Criador.
Ele por certo desculpará a vez que em pequeno fui à caça, com a Flobert que meu pai me dera para de mim fazer um homem e, ao decepar com um tiro a asa dum gaio, deitei a fugir horrorizado. Nunca mais.
Na meninice tive cães e gatos, uma ovelha, um porco de olhos meigos que parecia tudo compreender e a quem, sem resultado, muitos vezes pedi que falasse.
De pássaros em gaiolas nunca gostei, nem de lagartos adormecidos no fundo de terrários, ou peixinhos descrevendo tristemente voltas lentas na pouca água dum vaso, pois só de vê-los já me faltava o ar.
Depois, homem feito, maravilhei-me com os semelhantes e esqueci os bichos. Agora, tal um barco que aos poucos se afasta do cais, ao entrar na velhice vou perdendo o interesse pelos primeiros, e os outros basta-me vê-los nos filmes sobre a natureza.
Assim se vai degradando a minha visão do mundo e, pelo menos no que respeita os animais, sinto por vezes remorso de viver na Holanda há tanto tempo, sem me ter deixado contagiar pelo amor que o holandês sente por eles.
Porque, merecido ou não o que dele se diz nas bocas do mundo, ninguém poderá negar que o holandês é exemplar no seu carinho pela bicharada. Os cães não levam aqui vida de cão, mas de gente próspera. Os gatos, de há muito habituados a ementas gastronómicas, desconhecem o sabor do rato. Vivem neste país marmotas, cobras, cágados e coelhos tão mimados que, se os donos os quisessem devolver ao elemento natural, eles diriam não, muito obrigado, e voltariam a correr para o esplêndido conforto dos seus ninhos caseiros.
Também não é preciso viver no Sahel ou nas favelas do Rio, para sonhar como seria belo poder ser aqui cão ou gato e, à hora da refeição, hesitar entre pedacinhos de carne com legumes, pâté (rico em vitamina A e B2), salmão com arroz, salsichas, empanada de mariscos...
Estou certo que no céu, onde tem a seu cargo o departamento zoológico, São Francisco de Assis olha enternecido para a Holanda, e aprova todo o bem que aqui se quer e faz aos nossos irmãos bichos.
Porque não é só o carinho, o conforto, o bom trato, mas toda uma rede de previdências que, com as suas lojas especiais para o comer e o vestir, o seguro, os cuidados veterinários, próteses, cemitérios, distrações, serviço de ambulâncias, hotéis e asilos, e até eutanásia, torna a sociedade animal quase uma réplica da nossa. Falassem eles entre si uma língua inteligível e não duvido que disporiam de telemóvel.
Tal como o bondoso São Francisco, pois, também eu me enterneço e aprovo tudo isso, mas pelos jeitos a minha natureza de português continua imperfeita, e a minha solidariedade para com os nossos irmãos bichos pouco mais é que um verniz.
Dias atrás, quando me vieram propor tomar parte num curso de reanimação de animais - "boca a focinho" - recusei horrorizado.
Como o poderia eu, que nem sequer me sinto capaz de reanimar o meu semelhante com um "boca a boca"?
Como o podem eles?!