domingo, janeiro 31

O invejoso


Em cada geração da intelectualidade há sempre um curioso tipo: o invejoso. Perito na delicada arte de montar a sua reputação, enciclopédico nos interesses e no conhecimento, dotado de algum talento e cautelosamente arrimado ao Poder, cria ele fama e proveito de autoridade.

Manuseia com perícia a dosagem de cumprimentos, torna-se reverente para com o jovem poeta, aplaude o obscuro romancista que descobriu na Roménia, e assim vai elevando a própria estátua.

Anuncia urbi et orbi as suas andanças e raro passa ano em que, ora poesia, ora romance ou ensaio, não publique livro seu. Por vezes mais que um. Toda a gente o conhece, ninguém o lê, mas nunca ferra nem se agita, que isso são modos de que no Olimpo se desdenha.

Secretamente, porém, a sua vida é um inferno, pois dotado de inteligência e perspicácia ele sabe como poucos distinguir o trigo do joio. E sofre. E inconscientemente revela a inveja que o mortifica: quando enfrenta ou descobre noutro verdadeiro talento, bem podem tocar alto as trombetas, a sua ficará no saco.

sábado, janeiro 30

Efeitos secundários


Porque se me desarranjou a saúde, nas últimas semanas tenho tomado comprimidos de várias espécies e em quantidades que associo com a chamada dose cavalar. Resultado nulo. O curioso é que, não acertando a Medicina com a razão do meu achaque, receitam-me para isto e para aquilo, depois aqueloutro, ora para o físico, ora para o psíquico. É reumatismo, mas no dia seguinte não é, talvez artrite, inflamação assim, trauma assado, arriscam hipóteses com nomes interessantes como síndrome do túnel tarsal. Diagnóstico errado.

Faz-se um MRI e mais uma ecografia, Raios-X de manhã, de tarde. De sangue para análise devem-me ter tirado um litro. Aos frasquinhos de urina perdi a conta e por certo pedalei mais de uma etapa do Tour de France para ver se o coração aguentava. Aguentou.

No meio tempo distraio-me a ler os folhetos que acompanham as pílulas de variadas cores e tamanhos, atendendo sobretudo aos efeitos secundários. Descobri assim que a Amitriptilina me pode causar inesperada euforia, ou ter efeito contrário e levar-me ao suicídio.

Inquietante perspectiva. Será que vale a pena correr o risco, queixando-me só de dores num tornozelo?

quinta-feira, janeiro 28

Cortesias

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Porque venho de longe, e as bases que me deram datavam do séc. XIX, sou talvez demasiado sensível à confusão das formas de tratamento. O viver numa sociedade que conheci emperrada em bizantinices – os dicionários holandeses trazem ainda uma lista de como se dirigir a um ministro, general, condessa viúva, licenciado, bispo, etc. – e nos anos 60 fingiu abolir as finezas num repente, também desnorteia. Mas ao fim e ao cabo, creio que essa confusão reside menos num suposto esfumar das classes sociais, do que no problema individual de saber quem somos e como estamos na vida, pois enquanto uns se iludem com uma inexistente importância, convencem-se outros de que a igualdade já chegou.

terça-feira, janeiro 26

O tio de Roma

Bom teatro é o da vida, que o do palco fica sempre aquém.

Voltando ao dottore Lattarullo, escreve Norman Lewis: "Graças ao seu ar aristocrático e à capacidade de imitar à perfeição o sotaque romano, de vez em quando ganhava uns tostões desempenhando o papel de 'O tio de Roma' num funeral".

Mesmo que tenha vivido em extrema pobreza, o napolitano pode estar certo de que será enterrado num luxuoso caixão e que tudo será empreendido para homenageá-lo, elevando assim o prestígio da família.

O tio de Roma faz parte dessa comédia. De casaca e condecorações na lapela, chega à morada do defunto num bom carro com matrícula romana. Pesaroso, baixando os olhos, dá a entender que é longa a viagem desde a capital. Recebe os pêsames, fala vagamente do defunto, das recordações comuns num longínquo passado e da tragédia que a vida é. Acompanha depois o ataúde e no cemitério desaparece sem ninguém dar conta."


Ignoro se em Nápoles o uso permanece, mas se assim for vai-se lá com mais proveito a um enterro do que ao teatro.