terça-feira, setembro 14

Ter sorte

- Quarenta e quatro anos é a força da vida.
- A juventude.
- O melhor tempo.
- Lembro-me como se fosse ontem. Eu tinha quarenta e dois quando casei pela segunda vez. O que aconteceu ao rapaz, francamente, é uma grande pena.
- Uma tragédia.
- De facto.
Ela ouvia as conversas dos conhecidos em redor, mas sem realmente se dar conta, absorta ainda no cerimonial do enterro e em recordações que de súbito se lhe apresentavam com uma importância absurda. Coisas antigas, momentos esquecidos de há anos e incidentes comezinhos, cenas estúpidas. Era incompreensível lembrar-se agora em detalhe que ele, no dia do desastre, insistira em vestir umas cuecas de xadrez vermelho trazidas da América. Ou que tinha de pagar duzentos e vinte euros à livraria, um engano na conta de Janeiro. Telefonar mulher do Fernandes por causa do corrimão.
- E bom rapaz.
- Bom rapaz.
- Agora a Helena, nova e bonita como é, com a fortuna que herdou do pai o ano passado, mais o que lhe vem por parte do António…
Baixou a cabeça e afastou-se, antes que se dessem conta de que os ouvira. Rica, sim, era. Bonita? Felizmente o véu cobria-lhe o rosto, ninguém veria que tinha sorrido ao ouvir o cumprimento. Achas que és bonita, Helena? Perguntou-se, respondendo logo que sim, mas recomposta, a cabeça inclinada para o chão.

- E agora? - quis saber alguém num sussurro.
Outra voz desconhecida retorquiu que tinham de esperar pelos carros.
- Ficaram à entrada do cemitério.
- Eu vim a pé.
- Se quiser pode ir connosco.
Helena teve uma sensação desagradável quando lhe pegaram pelo braço, um senhor idoso, com mau hálito, que insistiu em lhe contar que em 39, uns meses antes da guerra rebentar, comprara “ao seu papá, que Deus tenha, um Packard, uma marca muito boa que já não há”, e que com esse carro tinha começado a sua prosperidade.
- Graças ao seu papá, minha querida menina! Um santo!
Talvez fosse sem maldade, mas o velho movia mão ao longo do braço dela com apertos inquietos e nervosos, que tanto podiam ser emoção como luxúria. Fez um gesto de agradecimento e livrou-se, os olhos baixos, contrição fingida, achando graça à sogra que desde a revolução de 74 não se cansava de dizer: “Eu cá não acredito em Deus nem no Diabo. Só no dinheiro. Ele é que nos ajuda e que nos salva. Nosso Senhor é uma boa treta”, e agora caminhava amparada ao padre, o rosário na mão.

- Linda viúva.
- Boas pernas e dinheiro como chuva.
Era incrível. Nem sequer reparavam que o burburinho dos passos não bastava para abafar as vozes. E de novo as recordações. Estava a pentear-se quando telefonaram da Polícia. Urgente. Sim senhora. O funcionário dizia ‘”xim xenhora”. Pousou o aparelho, corrigiu a maquillage e só então avisou os sogros de que o António tinha tido um acidente.
Era curioso pensar que nunca entrara num hospital - aquela vez que partira a perna tinha sido internada numa clínica particular e não contava - e o ar abafado, quente, fazia-lhe lembrar o colégio, as freiras, o cheiro de sopa e creolina.
A enfermeira disse-lhe que ia demorar porque tinham de operá-lo, e ela sentou-se no corredor, calma, olhando em torno aquele ambiente desconhecido, perplexa de que a monotonia do dia terminasse em tragédia.

- Não se pode fumar.
Não tinha dado pelo rapaz, talvez porque a cadeira de rodas não fazia ruído.
- Ali na salinha pode-se, mas aqui é proibido - acrescentou ele com um sorriso.
Sorriu também e guardou o maço de cigarros na bolsa.
- Está à espera de alguém? Família? Com certeza algum desastre.
Helena acenou que sim e ele fez rodar a cadeira vagarosamente, colocando-se diante dela:
- Nem era preciso perguntar, porque para aqui só vêm os desastres. Os doentes vão para cima. Eu estou cá vai em sete meses e tive sorte, sabe? Só fiquei paralítico da cinta para baixo. Mas se a senhora quer ver o que é desgraça, abra aquela porta. Está ali um que não tem braços nem pernas, e ainda por cima ficou cego. Na cama parece um pacotinho. Às vezes de noite, se começa a gritar…
O motorista fechou a porta do carro e ela, aliviada, tirou o véu.