segunda-feira, fevereiro 28

Pequenos gestos

Éramos sete ou oito no terraço do hotel e creio que ninguém reparou quando, com familiaridade de amante, ele lhe pousou a mão no joelho, e ela, o sobrolho franzido, lha sacudiu com um gesto brusco.
Talvez fosse incómodo que sentia, desavença pequena, uma daquelas irritações momentâneas que logo esquecem, mas para casal em vésperas de casamento achei de mau agouro.
Isto foi há-de haver seis anos. Vieram os filhos, uma rapariga e um rapaz e, na aparência, a sua vida era como a de tantos outros da mesma idade e com os seus meios, sem sobressaltos nem aflições de maior.
Quando tempos atrás ele me disse que se iam divorciar e estranhou não me ver surpreso, estive tentado a contar-lhe a minha recordação e outras pequeninas ocorrências que tinha observado. Não o fiz, achei pretensioso dar-me ares de profeta ou conhecedor dos sentimentos alheios.
Mas agora falo consigo: é você sensível aos alarmes, aos pequenos gestos de brusquidão só pequenos na aparência?

Conforto e carinho

Carinho e conforto

domingo, fevereiro 27

Nobel

A saúde não me preocupa e os fundos permitem-me uma confortável mediania. Ideias ainda vou tendo. Se de vez em quando barafusto contra a falta de tempo é por mau hábito, melhor faria se confessasse a inata desordem de como funciono.
De modo que, sem inimigos perigosos, livre de amizades que exigem excessiva atenção, casa confortável, harmonia familiar, comendo bem e sonos de oito horas, sobram-me razões para mostrar cara de contente.
Infelizmente assim não é. Quando me desprecato, e por coisas miúdas que um espírito sensato desdenharia, tomo um ar furibundo de pai-nobre, arreganho os dentes, torno-me violento, dou murros no tampo da secretária.
Ontem pus a casa em alvoroço, acudiu a família ao ouvir o meu berro e a pancada do livro que atirara contra a janela. Tomo encadernado, com peso para fazer estilhaços se a vidraça não fosse dupla.
"Por apenas este romance o autor merecia o Nobel", afirmou um crítico. Eu, levado na conversa, obriguei-me a lê-lo até ao fim, mas com a overdose de vaidade, pedantice, falta de tino, má carpintaria e ainda pior prosa, ao terminá-lo quase ia tendo uma síncope.

sexta-feira, fevereiro 25

Vigarista

Quem será? E que se lhe terá metido na cabeça para julgar que se apropriava sem mais nem menos do meu nome e se punha a botar figura no Facebook?
Nada garante que a fotografia seja a da pessoa, pois pode ser um avatar, um travesti, mas se for da própria há ali muito a compor: rosto de tolinha, olhos de carneiro mal morto, aquele jeito de se agachar a esconder a perninha curta um mau prenúncio. Mostras de miolo não se lhe vêem.
Avisei-a, teve prazo bastante para pedir desculpa, mas não respondeu, talvez a julgar que a coisa passava ou eu esquecia.
Pois enganou-se, menina. Sou de poucas graças e tenho especial desagrado por vigaristas e trafulhices. Vai haver guerra. Não julgue que pode continuar a usar impune o meu nome e que o Facebook é esconderijo seguro. Não é.

quinta-feira, fevereiro 24

Horas


Por vezes o que nos vale, o que salva, é o comezinho. Vai-se à mercearia, ou ao café para uma bica, entra-se na livraria, no relojoeiro, compra-se o jornal, actos simples que, ora distraem de um enfado, ora são compasso de espera entre aflições.
Há quem encontre ajuda e alívio no trato social, confessando-se aos amigos com mais ou menos sinceridade. Uns afastam a tormenta dedicando-se à música que ninguém ouvirá, outros escrevem febrilmente a poesia que só eles declamarão, sonhando, sonhando.
Horas más, horas de névoa espessa que impiedosamente se alongam.
A ver se a encurto as minhas, daqui a nada vou às compras e talvez tome um café.

quarta-feira, fevereiro 23

Turismo

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Por muito organizado que seja, no turismo há sempre surpresas

terça-feira, fevereiro 22

Nosso Senhor nos valha

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Democracia, liberdade, igualdade, são ilusões num país onde o Estado dá esmolas e a máquina do governo pertence a uns quantos políticos e banqueiros que, com espertezas de quadrilha, se apoderaram da faca e do queijo.
Mas um país que estende a mão à esmola do Estado, e tem por sonho maior a reforma, também não saberia que fazer com a liberdade e a igualdade, as verdadeiras, as que se ganham à custa de espírito cívico, diligência e responsabilidade social.
De modo que por vezes, o que melhor sintetiza a imagem de um povo é o falso mendigo à porta da igreja, pedindo "pelas alminhas de quem lá tem", ao mesmo tempo que, contente da finura, pisca o olho ao comparsa.
Nosso Senhor nos valha.

segunda-feira, fevereiro 21

Em defesa do Dr. Armando Vara (bis)

Em seguimento do post anterior avisa-me um simpático correspondente de que o texto circula no Facebook
- com intenção e sentido diferente do que foi escrito.
Acredito no aviso, que não posso verificar, pois saí dessa curiosa comunidade por razões que expliquei aqui:
http://tempocontado.blogspot.com/2010/02/facebook-genealogias-chatices.html , mas verdade é que as palavras servem para tudo e, dependendo de quem as usa, tanto se podem vestir do direito como do avesso.

domingo, fevereiro 20

Em defesa do Dr. Armando Vara

Por vezes torna-se difícil compreender a agitação em redor de acontecimentos comezinhos, mas certo é que ela espelha fielmente a mesquinhice e a inveja das classes baixas.
O Dr. Armando Vara, que recordo jovem funcionário da Caixa em Mogadouro, conseguiu, graças ao bafejo do Destino, mas sobretudo devido às suas extraordinárias qualidades, fazer na sociedade e na política uma sobejamente conhecida e meteórica carreira.
Secretário de Estado, por duas vezes ministro, pilar do Partido Socialista, íntimo do primeiro-ministro, de poderosos banqueiros, poderosos empreiteiros, poderosos sucateiros, e mais  gente da alta, raros se poderão orgulhar de igual CV.
Semelhante proeminência forçosamente enfurece os fracos, os incapazes, e assim se soube ontem que, com urgência de tomar um avião, o Dr. Armando Vara foi a um centro de saúde em busca de um atestado médico e, ao que dizem, não esperou vez, o que a televisão e os jornais publicitaram com desmedido interesse.
Claro que vivemos em democracia, mas não se deve perder de vista a realidade e, sobretudo, o facto apontado por Orwel, de que todos os homens são iguais, mas uns são mais iguais do que outros. Um carpinteiro, um lojista, um reformado, também são gente,  têm direitos, mas são escassas as suas vivências, funcionam em planos modestos, as humildes pressas que os afligem facilmente sofrem espera.
Um Dr. Vara, com o seu poder, as suas ligações e amizades, a sua posição na hierarquia, não deveria ter de se dirigir a um centro de saúde em busca de um prosaico atestado. Que o tenha feito e, por urgência, tenha passado à frente de um ou outro borra-botas, demonstra apenas o seu respeito pelas instituições e pela igualdade pregada há séculos pelo Socialismo.
Se estivessem no seu lugar e possuíssem a sua força, os que se queixaram de ter perdido a vez fariam como ele poderia ter feito: mandavam uma secretária ao centro ou intimavam a médica para que lhes fosse passar o atestado a casa. Não o fez, e isso o honra.
Aflige constatar como o povinho amplia niquices e os demagógicos media se prestam à manipulação dos factos. Tivesse este país muitos homens como o Dr. Armando Vara não estaríamos como estamos.

sábado, fevereiro 19

Afurada

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Três guardas-fiscais no cais da Afurada, um dia de 1933. Meu pai tem então vinte e dois anos, é o da direita, com o revólver no cinturão. Apontou ele no verso da fotografia que o da esquerda se chamava Vieira. A alcunha do do centro é que me levou a pôr a fotografia aqui, porque é das que não se inventam e ficava bem numa história. Chamavam-lhe o Pré-Olé.

Vivaldi / Stern / Perlman

sexta-feira, fevereiro 18

O nosso UMM

Porque vive num mundo criado pelos dinheiros do papá e as certezas da burguesia, o Carlos, o meu amigo Carlos, jovem nos trinta e simpático que baste, anda aborrecido comigo.
Diz que na minha escrita, nos livros que leu e nas notas que aqui deixo, há demasiadas sombras, azedumes, pensamentos negativos. Parece-lhe que em parte será da idade, mas acha imperdoável, até doentio, o que chama "sempre a bater na tecla do infortúnio". E no tom meigo das Testemunhas de Jeová que aos domingos de manhã insistem em explicar a Bíblia, vai desfiando o que é lindo no nosso Portugal, as coisas boas que temos e os outros nos invejam.
- Diz lá. Que coisas?  
O sorriso a mascarar a seriedade da sua crença, aponta ele então os bolinhos de  bacalhau, os pastéis de Belém, o vinho verde, a praia de Moledo, a Linha do Tua, as gravuras de Foz Côa, os cafés Delta, aquele restaurante que ambos conhecemos e onde se come um soberbo Bacalhau à Narcisa, a Ponte Dom Luís, o Terreiro do Paço…
Vai desfiando, e nunca o interrompo, mesmo quando compara o Gerês aos Alpes e afirma que nem na América há jipes como o nosso UMM.

quinta-feira, fevereiro 17

Vergonha e pouca vergonha

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Houve alturas em que eu compreendia alguma coisa da política portuguesa. Veio depois o tempo em que me parecia difícil compreendê-la. Finalmente desisti, porque o que eu julgava, esperava, que fosse política, é o descarado jogo de interesses partidários e particulares em que a nação, a coisa pública, não é de todos, mas teta prenhe de uns quantos que se poderiam julgar uma Máfia, tivessem eles o sentimento da solidariedade e da honra.
Com as suas moções de censura, adendas, reciclagens, debates e reviravoltas, a política portuguesa tem o folclore dos bailados do Verde Gaio: são tudo corridinhos, sapateados de fingimento para uma triste e miserável plateia.
O senhor primeiro-ministro e os senhores ministros arrotam as clássicas postas de pescada e, enquanto eles e nós sabemos, vemos, que tudo vai mal, afirmam sisudos que tudo corre bem, não tardarão os amanhãs que cantam, são passageiras as névoas que encobrem o Sol.
Como por falta de verba e trafulhices o Inferno não dispõe de tormentos,  e o julgamento da História chega sempre tarde, quando chega, nada faz mossa aos senhores que mandam, lhes tira o apetite nos banquetes ou perturba o sono.
Mas eu, no seu lugar, punha-me a salvo, não ia acreditar na brandura dos costumes nem na mansidão de um povo besta de carga. Há sempre um momento em que os que sofrem não aguentam nem fogem, mas gritam "Basta!"
Leiam aqui e perguntem-se, como eu me pergunto: que país é este, onde se criam situações assim e os culpados delas permanecem impunes?