quarta-feira, novembro 23

Razões

Contaram depois que já em pequenos eram assim, por um nada a esgadanhar-se, dava aquele  um soco tirava o outro o canivete, arranhavam-se, cuspiam-se, sorte não se terem matado à fisga, se bem que mais de uma pedra tenha acertado no alvo e deixado marca.
Os anos passam, a vida corre e muito muda, o tempo de estranja deixou um verniz, o bocadito de dinheiro conforta, a paz de espírito dá outras maneiras.
Estavam à conversa no meio da rua e um, cuidadoso, pegou o outro pelo braço, a afastá-lo do tractor que se aproximava.Os cães de ambos começaram a rosnar, e de súbito estavam engalfinhados, mordendo-se, rebolando entre as pernas dos donos.
Um pontapeou forte, ao acaso, por má sorte o cão do outro, que se afastou a ganir. Entreolharam-se, pareceu que a conversa ia continuar e ainda disseram umas palavras, mas depois foi tudo repentino, o sangue espirrava, não se lhes podia acudir.
A cambalear, socavam-se com fúria assassina, se um caía esmagava-o o outro às patadas, as mulheres em volta a carpir, os anciãos abanando a cabeça. E de súbito sacaram das navalhas. Correu sangue dum braço, as roupas a tingir-se de vermelho, um ajoelhado, a arfar, a espumar, o outro ali perto caído de borco, o povo a acudir e aos gritos de pena.
Levaram-nos de ambulância. Veio recado que estão fora de perigo. Repete-se que de pequenos também eram assim, mas não é essa a razão. O que esteve na Suíça costuma dizer que só os pobretanas se contentam com a Espanha, e o outro dói-se. E que a mulher dele trabalhou nos telefones, nunca precisou de andar de escrava na limpeza.