quinta-feira, novembro 17

Sobre a Liberdade

(La Liberté guidant le peuple - 1830 - E. Delacroix -Clique para aumentar)
Da boca de quem teve pais autoritários, se criou numa sociedade de costumes medievais e cresceu durante a ditadura, parecerá estranho afirmar que nunca tive problemas com a liberdade, mas assim é.
Pelos jeitos nasci com ela tão incrustada na alma e na maneira de ser, que o que chamam a sua falta nunca me incomodou, nem impediu que fizesse e procedesse a meu bel-prazer. Corri riscos, evidentemente, claro que levei pontapés, me puseram obstáculos, negaram direitos, mas nada disso nem ninguém conseguiu aferrolhar o sentimento. A liberdade é coisa minha, íntima, intocável, guardada no mais fundo. Não é para transacções. Pude, mas nunca a troquei ou trocarei por dinheiro, favores , benesses, proveitos, compromissos, regalias.
Escrevi algures e repito-o com verdade: faltam-me as asas, mas sou livre como um passarinho, metam-me a ferros e continuarei assim. Para ser franco, devo dizer que sempre me causou espécie o modo como em geral se alude à liberdade. Ora vem em maiúsculas, ora a fazem pomposa, por vezes nevoenta e façanhuda, manipanço que é obrigatório venerar. Uns querem morrer por ela, ou é a revolução que no-la  traz,  dizem que se deve lutar para mantê-la, mas para mim, quanto mais falam dela  mais nevoento lhe fica o contorno.
Liberdade verdadeira conheço uma: a do indivíduo. As outras assomam-se-me figuras de retórica, instrumentos a que cada um, cidadão, homem político, adolescente, militar ou carcereiro, dá o significado e uso que lhe convém.

É pena perdida contradizer-me, tão-pouco adianta demonstrar a simpleza  do meu pensar, pois melhor que ninguém conheço o que me limita. Mas já que tocámos no assunto aproveito para confessar que cedo me apaixonei pela Liberdade – sim, com maiúscula. Francesa, ainda por cima. Teria então oito anos, foi o segundo e violento coup de foudre da minha vida, assombrei ao vê-la erguer-se semi-nua de uma página colorida do Grande Dicionário Lello Universal Ilustrado.
Esplendorosos, acetinados, aqueles eram os primeiros seios que secretamente via, e logo odiei o Delacroix que a tinha pintado e antes de mim os admirara. De olhos fechados dei-lhe um beijo casto. E outro. E outro. E mais um. Depois atrevi-me. Ela disse que sim , apertou-me nos braços – os mesmos que tinham segurado a bandeira da Liberté, Egalité, Fraternité -  e  foi como estar no céu as muitas noites que dormimos juntos.
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A versão elegante pode ser lida aqui: http://travessaopontofinal.wordpress.com