sexta-feira, fevereiro 10

Reviravolta

(Ilust. Frank Frazetta - Clique para aumentar)
Rapaz que fecha os olhos e, por comodismo, ignorância, desleixo, anseia ficar parado no tempo, está em maus lençóis. Digo-lho eu, que venho do século XIX (*) , ou ainda de mais longe  e, julgando ter visto muita mudança, me dou conta que elas são tantas, e tão rápidas, que ainda o meu espírito não se habituou à novidade, já outra mais recente me confunde.
De facto venho de longe, de um tempo em que a mulher, sem ser de facto coisa, e estando um pouco acima do cão, só na aparência gozava de estatuto humano. As leis podem ser justas e  generosas nos parágrafos, mas a realidade doméstica pouco ou nada tem a ver com as intenções do legislador. Daí a minha dificuldade em apagar da memoria as violências e humilhações que testemunhei, a vergonha que ainda sinto das vezes em que, por um ou outro motivo, me pareceu que, como queria a Igreja e diziam os costumes, a mulher nascera para a subordinação e a obediência.
Paris deu um pontapé no atavismo das minhas convicções. Ali, se num ou noutro momento a mulher se mostrava no papel tradicional, fazia-o por interesse, jogo ou coquetterie e, findo o teatro, logo pronta também a vestir as calças e pedir meças ao companheiro.
Daí por diante não passou ano sem abalo para as minhas certezas. Perplexo, uma vez ou outra com genuíno receio de castração psicológica, testemunhei o avanço das hostes femininas e a sua vitória no assalto à fortaleza do machismo. Tive depois a impressão de que a guerra dos sexos entrara numa espécie de armistício, ora perturbado pelas exigências feministas, ora pela oposição masculina  à demasia das perdas.
Com um temor que, por estar fora de jogo não devia sentir, mas elimina os resquícios do que em mim ainda restava de orgulho macho, leio agora num inquérito que as jovens mulheres com estudos superiores e boas posições, encaram séria e pragmaticamente o casamento com rapazes de  bom físico e só o secundário. Nada de ideias, discussões sobre a Arte, a Economia ou a Política, o futuro do mundo, mas dos que ignoram a ambição, tenham um emprego que lhes dê para os alfinetes e deixe tempo para cuidar dos filhos e da lida de casa.
Venho de longe. Calhou-me assistir à igualdade dos sexos, preparo-me para, dentro em pouco, testemunhar a reviravolta completa, e ler nos jornais que o rapaz se queixou à Polícia de que a sua senhora lhe deu um par de bofetadas por não ter a comida pronta.
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(*) Não é erro. Nasci em 1930, mas em Gaia os costumes ainda eram dos meados do século anterior. Em Trás-os-Montes datavam da ocupação romana.