terça-feira, março 26

Continuando


Supremo bem é a liberdade de opinião, poder cada um dizer o que pensa, o que aprecia e do que desdenha. Mas é bem que pouco se usa, pois a experiência ensina que é de melhor aviso calar. Uns calam-se, outros enfeitam.
"Grande homem. Homem bom. Sábio. Grande figura." Não me agonio porque o estômago ainda aguenta, mas ó senhores, um bocadinho de comedimento.
De Mécia e Jorge de Sena ouvi eu qualificações diferentes, e outros, que não eram família, mas foram vítimas do comportamento da "grada figura", me confessaram que se calavam por medo.
E lá vem a "História da Literatura Portuguesa", cuidadosamente depurada, deixando de fora quem não era do Partido nem da camarilha.
Menos adulação, por favor, que não é essa a maneira mais digna de respeitar os mortos.

Os que vão


Estranha sensação: três dias de viagem, em cada dia o anúncio de uma morte.
Partiram duas nonagenárias que, aqui na aldeia, faziam parte do historial da minha meninice. Ambas conheci viçosas e desempenadas. Cumpriram o seu destino, tiveram filhos, lutaram pela vida, deixam boa recordação. Paz à sua alma.
Partiu também um nonagenário que só de nome conheci, "figura grada" das Letras neste país, onde a fama depende tanto da curvatura da espinha como da habilidade de escolher sempre o bom campo e ser perito em navegar à bolina. Esse e um compincha levaram quatro longos anos a amargurar-me a vida, fazendo o possível para que me tirassem o pão. Falharam, porque há terras com lei e decência em muitas pessoas.
Pouco se me dá que estejam ambos no Inferno, já que mesmo em vida não fui capaz de odiá-los, bastou-me o sabê-los vermes.

sexta-feira, março 22

"Midnight Cowboy"

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1969. Midnight Cowboy - Jon Voight, Dustin Hoffman - 3 Oscars, 25 outros prémios - "A naive male prostitute and his sickly friend struggle to survive on the streets of New York". 
O filme era bom, mas insuficiente para que o recorde em detalhe. Todavia, por razões que me escapam, ao longo destes anos todos, cada vez que, como hoje, preparo o regresso a Portugal, ando por casa a trautear "Everybody's Talking At Me".

"Everybody's talking at me.
I don't hear a word they're saying,
Only the echoes of my mind.
People stopping staring,
I can't see their faces,
Only the shadows of their eyes.

I'm going where the sun keeps shining
Thru' the pouring rain,
Going where the weather suits my clothes,
Backing off of the North East wind,
Sailing on summer breeze
And skipping over the ocean like a stone."

quinta-feira, março 21

"Mentiras & Diamantes"

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Sarah Langton, jovem anglo-italiana de bons e maus costumes, amores vários, anda desde hoje por aí, mas incógnita. Nas altas esferas, onde o mando repousa, foi decidido que só a 12 de Abril se poderá mostrar.

Não recomendo

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É bom, mesmo muito bom, mas não recomendo. Vou a meio das 872 páginas e tenho dormido mal, tanta impressão me fazem os horrores da Revolução Francesa. Julgava  conhecê-los, tinha ideia de que já lera mais que o suficiente, mas a consciência jovem, espicaçada pela narrativa, tende a distorcer as imagens, empresta à História ficções de cinema e de romance.
Na velhice outro galo canta. A visão será agora deturpada pelo que fui acumulando de medos e desenganos, verdade é que nunca La Terreur se me apresentou com este negrume ou idêntica capacidade de atormentar.
Com o seu talento Hilary Mantel faz-me testemunha, obriga-me a escolher partido, empurrado por ela mato, atraiçoo, torturo, deixo de ter consciência, sou apenas fera.
Deus nos livre de que um dia se repita o que acontece quando, esfomeada, espezinhada, desesperada, a multidão sai à rua e levanta forcas.  

quarta-feira, março 20

Motivo de orgulho

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Há a parte mediática e a parte exemplar, mas o facto de, dias atrás, a Rainha Beatriz ter passado três horas a lavar cães necessitados de banho, integra-se num dos mais valiosos aspectos da sociedade holandesa: o voluntariado.
Cerca de 5.6 milhões de holandeses adultos, 44% da população, dedicam parte do seu tempo a trabalho não remunerado nas mais variadas actividades. Nos hospitais, nas associações desportivas, nos canis, nas escolas, nos jardins de infância, na protecção da Natureza, nos lares da terceira idade, em museus e associações culturais, no acolhimento, a cozinhar para os vizinhos idosos, ou a transportá-los, a fazer-lhes companhia, tratar-lhes da limpeza.
Uma sociedade que em muitos aspectos é dura, eficiente, insensível, com razão se pode orgulhar de ser campeã mundial do trabalho voluntário.
 

terça-feira, março 19

O perigo da ironia

Custa a crer, mas acontece de verdade: há gente atacada de tão desmesurada cegueira, tão enfronhada nos seus pequeninos e grandes ódios, nos seus medos, nas suas raivas, que toma à letra o que é ironia, fica incapaz de distinguir entre facécia e realidade, sente-se solidária quando devia ficar de pé atrás.
Vai em dois anos, num momento daqueles em que a pátria me dói, desabafei aqui o nojo que me causam os sobas que nela mandam - governantes não são - e os salteadores que a pilham, os parasitas que a sugam.
A julgar que ironizava, pronto se me foi a ilusão quando comecei a receber felicitações e abraços duns tolos que lêem o que lá não está, e apoios no género "de facto as classes baixas nunca souberam o que querem", "o povinho precisa é de chicote, só assim aprende".
Deus Nosso Senhor dê vista e entendimento aos cegos que não distinguem a ironia, e se julgam mais do que o seu semelhante.

segunda-feira, março 18

As Seychelles

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Anos passados, uma daquelas conversas em que nos perguntamos a razão de estarmos ali, os pensamentos a cobrir a fala, a atenção a esmorecer, nos olhos um nevoeiro.
- Estás a brincar! Palavra? Nunca estiveste nas Seychelles?
- Não.
Quanto mais eu negava, mais ele insistia que não podia ser. Toda a gente ia às Seychelles.
- O Soares foi dos primeiros, os ministros vão lá, aquele careca da televisão, não me lembra o nome. O filho do Soares. A Lili Caneças, a tipa do Expresso. O Figo. O Loureiro. O Isaltino… Se calhar também vais dizer que nunca foste ao México. Cancún?
- Não fui.
Não podia ser. Era eu a fazer-me caro, a fingir de especial, a querer-me diferente e a desdenhar da mudança. Bastava olhar à volta, ver o que acontecia, e como finalmente já não vivíamos no buraco atrasado em que a ditadura nos mantivera, à nossa frente abriam-se os vastos horizontes da progresso e da modernidade.
- Dizes que não foste, mas já escreveste sobre o México.
- Engano teu.
À falta de assunto de mais substância, esses diálogos repetiam-se em monótona frequência, ele a querer-me em viagens para longes exóticos, eu a insistir na minha pacatez.
Desde então, como é sabido, as circunstâncias são as que conhecemos, fala-se de crise, carestia, emigração, desemprego. Há pouco, numa roda, por motivo que não recordo alguém referiu as Seychelles. Vi-o retesar, mas passou-se por alto o entusiasmo antigo. Caridade não terá sido, que dos presentes era eu o único que nunca lá tinha estado.