sábado, novembro 16

José Saramago 1989

Entrevista a José Saramago por J. Rentes de Carvalho em 9 de Fevereiro de 1989 (*)

Aos sessenta e seis anos José Saramago vive confortavelmente a dois passos da residência oficial do primeiro-ministro, sorri divertido quando lhe pergunto qual é a sensação de, quase do dia para a noite, se ver liberto de tantas pressões e ser considerado como the grand old man das letras portuguesas:

«Se o êxito tivesse vindo quando eu tinha uns trinta ou quarenta, anos, é possível que, depois de viver muito tempo com semelhante aura, eu estivesse imbuído dum sentimento de importância e caminhasse pelas ruas de Lisboa com um ar de patriarca e glória nacional. Daqui a cinco ou dez anos, se tiver tempo para escrever o que ainda penso escrever, talvez o possam dizer. Mas hoje não tiro daí nenhum sentimento de vaidade ou de orgulho, não me tomo por importante, e quando ouço afirmações tão simpáticas como essa, a minha tentação, sinceramente, é olhar para o lado, a ver se estão a falar com outra pessoa.»

- Quais são, na sua opinião, as circunstâncias que promoveram em Portugal o actual interesse do público pelo realismo mágico e o romance histórico?

«Eu não sei se haverá de facto um interesse do público orientado para essas duas áreas, se exactamente é verdade existir esse interesse. O que sim, acontece, é um fenómeno bastante mais geral e eventualmente positivo: depois do 25 de Abril, uma data que vai ficar como uma inevitável referência no plano cultural e no plano literário, aconteceu qualquer coisa que é novo nesta terra, e que foi o súbito - porque efectivamente foi como que uma espécie de explosão, de erupção - o súbito interesse do público português pelos seus escritores. Quer dizer: não é que antes não existisse um interesse, mas digamos que a atenção do público se dispersava mais pelas obras traduzidas. Quando dois ou três anos depois começaram efectivamente a aparecer obras, e refiro-me especialmente ao romance, houve de facto como que uma descoberta dos romancistas portugueses por parte dos leitores portugueses, e que, julgo eu que tem que ver muito com - eu não quero cair na velha questão da perda da identidade nacional, o que creio ser um falso problema - tem a ver, enfim, com o regresso à pátria, ao nosso ponto de partida. Parece notar-se desde então como que uma espécie de regresso do interesse dos portugueses a si próprios. Quer dizer: passaram a interessar-se por si próprios e, consequentemente, passaram a interessar-se mais pela sua história e pela sua cultura, como uma descoberta de si mesmos no plano histórico e cultural geral.»

Mas no seu caso…

«No meu caso, penso que isso tem a ver com uma atitude minha em relação à história e à cultura, e sobretudo em relação à história, que é o eu não separar o ontem do hoje, e também para quase não separar o amanhã do hoje e do ontem. Para mim o tempo é qualquer coisa onde eu estou, não onde eu me movo, porque é o tempo que se move comigo, ou eu me movo com o tempo, eu não me movo no tempo, e esta ideia dum tempo que é uno e que não se pode dividir em passado, presente e futuro, faz com que, ao escrever, por exemplo, o Memorial do Convento, eu o tenha feito, não com a consciência de estar a escrever um romance histórico, mas com a consciência de estar a tomar uma parte do tempo, que tanto faz que seja anterior ou posterior, ou de agora, ou de amanhã, e que contém - não quero dizer que contenha uma lição, porque não vou buscar lições à história para dar essas lições às pessoas de hoje - mas que tem pelo menos uma constância para mim, a constância do sonho do homem, do trabalho do homem, da aventura do homem no tempo. Para mim estão tão perto de mim o D. João V do Memorial do Convento como o primeiro-ministro Cavaco Silva. Eu não tenho a consciência de estar a escrever um romance histórico. Quanto à questão do realismo mágico, ou real maravilhoso, tudo isso, essas pequenas etiquetas que tentam definir, enquadrar, um modo de ver a realidade, eu acho que tem mais que ver, no meu caso, com aquilo a que eu chamaria uma espécie de sobrenaturalização da realidade. O tomar toda a realidade como sobrenatural. Ou melhor: ao escrever, sobrenaturalizar a realidade.»

Mas ao sobrenaturalizar a realidade, não se corre o risco de lhe dar assim como que um cheiro de religioso?

«Não, não acho, sinceramente que não. É realmente verdade que há como que uma espécie de atitude religiosa minha em relação a tudo isto. Quer dizer: em relação ao mundo, em relação à sociedade, ao homem, à criação, seja ela qual for - a criação literária, a criação artística. Há uma atitude de profundo respeito de mim em relação a esta coisa que é o ser humano, e esta coisa que envolve o ser humano, mas sem qualquer sobrenatural ou transcendência. Não tenho nenhuma relação com a transcendência. Sou ateu confesso, declarado e imperturbável. A morte não me tira o sono e o além não me traz nenhuma preocupação particular e não creio na vida futura. Tenho essa atitude em relação à vida, mas à vida que eu sou, à vida que eu tenho, à vida que é dos outros, onde eu estou. Então, quando eu falo em sobrenaturalização da realidade, no fundo talvez isso não se afaste muito de qualquer coisa que não tem nada que ver com a religião - e quando eu digo que não se afasta muito não é em relação aos fins, não é em relação aos resultados, digamos que é em relação à atitude. Uma atitude próxima da atitude surrealista.»

De que modo é que o seu ser comunista se enquadra nessa forma literária que, como diz, se aproxima do surrealismo?

«Eu acho que se enquadra muito bem, pacificamente, sem nenhuma dificuldade. Creio que tudo isso assenta num preconceito, que consistiria nisto: se o escritor x. é comunista deve escrever desta maneira e deve tratar estes temas, como se todo o resto lhe estivesse vedado. O facto de, em certas épocas, ter havido orientações de carácter geralmente vindas de ideólogos-funcionários, ou de funcionários-ideólogos, como se lhes queira chamar, e que eram geralmente gente sem nenhuma sensibilidade artística, e decidiam no seu foro particular que a arte ou a literatura se deviam fazer de determinada maneira, e se esses funcionários encontraram escritores ou artistas que acataram essas ordens, ou essas orientações, então eu direi que o mal aí se divide pelas aldeias, e tanta culpa têm uns como têm outros. O que me parece é que a limitação exterior da capacidade imaginativa, criativa, especulativa, é, seria com certeza, um atentado contra a minha própria liberdade pessoal e, tão grave como isso, contra a liberdade que reivindico de criar conforme eu entenda. E é-me completamente indiferente, mas rigorosamente indiferente que, eventualmente, à direcção do Partido Comunista Português ou algumas das pessoas da direcção do meu partido - coisa que aliás nunca aconteceu, é preciso acrescentar, mas pode ter acontecido dentro deles próprios e não mo terem dito - não tenha agradado particularmente, ou que continue a não lhes agradar particularmente o tipo de literatura que eu faço. Se isso acontece é-me completamente indiferente, porque nem eles ficam mais comunistas pelo facto de pensarem assim, nem eu fico menos comunista pelo facto de escrever como escrevo.»

Embora Portugal seja um país onde uma grande parte da população continua a viver mal, na literatura portuguesa nota-se uma espécie de enfado, um desinteresse em relação aos acontecimentos da sociedade em que vivem. E não me refiro somente aos acontecimentos políticos. Enquanto o neo-realismo esteve na moda, tinha-se a impressão de que os escritores se sentiam solidários com aqueles que viviam menos bem. Hoje tem-se a impressão que essa solidariedade desapareceu para dar lugar a preocupações exclusivamente estéticas.

«Bom, eu não sei exactamente… Eu diria que esse fenómeno não é exclusivamente nosso. Eu creio que isso a que chamávamos o romance social, para falar só do romance, evidentemente, está "desacreditado" em toda a parte. Eu dou-lhe um exemplo, até aqui ao lado, na nossa vizinha Espanha, um romance meu publicado em 1980, o Levantado do chão, e que é o quarto livro meu que se publicou em Espanha, depois d’O ano da morte de Ricardo Reis, o Memorial do Convento e A jangada de pedra, embora tendo sido bem recebido pela crítica, essa crítica não deixou de estranhar que, num tempo como o de hoje, esse romance abordasse duma maneira tão crua questões como a fome, o desemprego, a luta pelo pão e tudo isso, o que se considera - e é natural que sim, que se considere - que agora no quadro da felicidade que vem aí pela porta da CEE, todas essas questões não têm mais sentido. Portanto não é apenas aqui em Portugal que esse fenómeno se dá, eu creio que é um fenómeno europeu. Não sei como é que as coisas se passam na Holanda, mas se calhar não andarão muito longe disso, a não ser que a Holanda já seja um país tão feliz, tão feliz, que os seus escritores não precisem de preocupar-se com essas questões.
Estas coisas estão todas ligadas umas às outras, e talvez haja uma razão de carácter sociológico para que a literatura se esteja a afastar, ou se tenha afastado de temas que, ainda há vinte anos ou coisa que o valha, eram temas que o escritor se sentia como que obrigado a tratar.»

E hoje não?

«Eu julgo que isso tem que ver com a difusão maciça das imagens, com a televisão, que enche as nossas casas de tudo quanto até há algum tempo era campo quase exclusivo de tratamento para os escritores. O mal social, neste caso a fome, a droga, tudo, a televisão, pelo menos a televisão portuguesa, dá-me todos os dias uma dose maciça de fome em África, de tudo quanto são carências, oferece-me tudo limpo e a cores. Então, quer dizer, a brutalidade dessa informação e o efeito de analgésico são de tal ordem que acabam por produzir o cansaço da repetição. E tenho a impressão de que o escritor acaba por chegar a esta conclusão: não vale a pena estar eu a escrever sobre aquilo que está constantemente a ser visto. Penso que esta pode ser, enfim, uma razão. De qualquer maneira não creio que se esteja a cair numa espécie de esteticismo, de vazio. Antes me parece que estamos todos um pouco angustiados.»

De olhos abertos para o ecrã da televisão, mas fechados para a realidade circundante?

"É o fim duma civilização, a entrada noutro tempo que nenhum de nós é capaz de imaginar o que vai ser. Esse bombardeamento maciço de canais de televisão está a encher as casas de tudo quanto é mensagem, de tudo quanto é imagem e informação, e nós não sabemos o que vamos fazer com elas. Eu neste momento não sei o que é que faço com o acumular de informação que, se eu abrir a porta, me entra pela porta dentro. Então, eu julgo que no nosso caso particular, aqui, com um desenvolvimento tecnológico que não tem comparação nem sequer com o dos vizinhos mais próximos - eu julgo que a atitude dos escritores portugueses hoje… Mas não quero falar em nome dos meus colegas, tenho de falar em meu próprio nome, eu sinto que o meu dever neste momento, neste momento em que um certo Portugal vai morrer, inevitavelmente vai desaparecer, é como se eu tentasse, e tentasse é mesmo a palavra, escrever algumas linhas de um testamento que vamos ter de deixar neste tempo da nossa história. Eu julgo que todos os meus livros têm no fundo um carácter testamentário.»

E de mensagem?

«Não lhe chamaria mensagem. É por um lado uma palavra demasiado cheia e por outro lado demasiado vazia. O que eu quero dizer é como se fosse um acto de reflexão. Pensar por um lado na minha própria vida pessoal, o que fiz, o que fui, o que sou, mas sobretudo pensar nisso não em termos autistas, mas sim em termos de parte de uma colectividade, de uma sociedade, dum país, dum povo que é este. E sempre com a consciência de que estou também a dizer algumas das últimas palavras de um país que, duma certa maneira, vai dar lugar a outro país. Dentro de vinte, trinta anos, Portugal não terá nada que ver, ou pouco terá - e eventualmente em aspectos positivos, mas quem sabe se também em aspectos negativos - não terá que ver com o Portugal do século 19 que só agora é que está nas vascas da agonia. O Portugal do século 19 está a morrer agora. Então digamos que os escritores deste tempo talvez sejam os últimos escritores do século 19.»

Li com alguma surpresa o seu romance A jangada de pedra, e ainda com mais surpresa li um artigo seu demonstrando uma certa irritação para com a ideia da Comunidade Europeia, a Europa de nós todos, aquela casa europeia em que vamos ser obrigados a viver, sem meios para pagar o aluguer. Acha que a nossa adesão à CEE acabará por nos fazer culturalmente mal?

«Eu não posso ser evidentemente contra as permutas culturais. A cultura dos homens fez-se da criação própria e da permuta com os outros e não se trata de buscar uma espécie de isolacionismo cultural. Simplesmente, quando se diz que uma posição como a minha é uma posição que está, digamos, contaminada de nacionalismos, e neste caso de nacionalismo literário, de nacionalismo cultural, a minha resposta é sempre esta: quando a mim me acusam de nacionalismo é porque, ou melhor, quem me acusa de nacionalismo está, no fundo, a defender o seu próprio nacionalismo.»

Espere aí! Além de também ser português, eu de maneira nenhuma o acuso de nacionalismo.

«Não, não é você que me acusa, são as pessoas que dizem ah! mas agora nesta altura, e fazendo já parte da Europa, para que é que vamos estar a incomodar-nos com isso? E dizem que não faz sentido. Ora eu digo que faz sentido. Porque vamos lá ver: o que é a CEE, o que é o Mercado Comum? Bom, eu sou ignorante de todas essas questões, mas não sou completamente ignorante da história. E as guerras na Europa sempre tiveram um único motivo: a disputa da hegemonia sobre a Europa. Depois destas duas guerras terríveis, eu penso que, mais ou menos conscientemente, as grandes potências europeias deverão ter chegado à conclusão de que não é possível alcançar a hegemonia sobre a Europa através duma guerra. E isso é positivo. Então as duas ou três maiores potências europeias puseram-se de acordo para, conjuntamente, administrarem a Europa. O que se está a passar é a administração da Europa. E eu não posso esquecer nunca, não esquecerei nunca, que de facto este nosso pequeno país foi literalmente desprezado, ignorado, humilhado algumas vezes, até pelos seus próprios aliados, como é o caso da Grã-Bretanha. E não tenhamos ilusões, o desdém continua, os pequenos países da Europa vão continuar a ser pequenos países e tratados como pequenos países. Essa ideia de doze parceiros iguais é uma mentira. Se a política económica portuguesa já não é resolvida aqui, se na distribuição europeia do trabalho nem sequer sabemos que parte é que nos vai caber, começamos a suspeitar. Quando o ministro da agricultura português declara que a nossa vocação florestal é um trunfo junto da CEE, está a dizer que na divisão da produção europeia, a nós cabe-nos apenas sermos uma floresta para fornecimento de celulose.»

Afinal você mostra ter uma preocupação política e social, enquanto que no seu romance A jangada de pedra...

"Quando eu n' A jangada de pedra entro nessa utopia de separar a Península Ibérica da Europa não é, isso não significa o corte da Península Ibérica em relação à Europa, significa que a Europa deve ser arrastada, levada para o sul, é dizer: atenção Europa, há mais coisas no mundo do que tentar ser um terceiro bloco económico entre os Estados Unidos e o Japão. E no plano cultural o que eu não quero é que este país desapareça culturalmente. Mas esse risco existe, precisamente com todos os meios e todas as pressões de ordem económica e o processo de implantação das multinacionais. Essa alegria da circulação dos capitais dentro da Europa não vai significar que os capitais portugueses se irão instalar na Holanda ou na Alemanha, mas que os capitais holandeses e alemães se vão instalar aqui. E os espanhóis, os franceses, todos mais. Ora a partir do momento em que o capital está instalado não precisa de mandar tropas, não precisa de obrigar toda a gente a falar alemão ou holandês. Quer dizer: é a própria força das coisas que vai fazendo como acontece com um queijo que é cortado pelo lado de baixo, e olhando assim de cima parece que o queijo está intacto. Nós vamos ser cortados em fatias finíssimas pelo lado de baixo, e um dia destes nós não teremos queijo, ou teremos um queijo completamente reduzido à casca. Mas o que também felizmente acontece é que as pessoas e as culturas têm uma grande capacidade de defesa. O homem sabe que morre, que tem de morrer, mas insiste em deixar a marca da sua presença. E assim, ao mesmo tempo que assistimos a um processo de globalização cultural, assistimos também à inssurreição das pequenas culturas e das pequenas nacionalidade que, justamente, não querem desaparecer.»

Mas como explica então que em Portugal se recomece a falar a sério da possibilidade de uma União Ibérica, do iberismo, a fusão do nosso país com a Espanha?

«Aí há as velhas histórias do medo da Espanha. Temos um medo incrível de tudo quanto vem de Espanha, até inventamos o ditado de que da Espanha não vem bom vento nem bom casamento. O que acontece é que, ao olharmos para a Europa, podemos ver que há um certo ar de família dos Pirinéus para cá. Para além das diferenças que não são só entre Portugal e a Espanha, porque existem dentro da própria Espanha, e eu creio que nalguns aspectos as diferenças no interior da Espanha podem até ser maiores do que aquelas que há entre nós e os espanhóis tomados nos seu conjunto. A Catalunha não é a Andaluzia, a Andaluzia não é a Galiza, e assim por diante. Aqui em Portugal o espanhol é sempre o inimigo puro por definição. Não importa que outros nos tenham tratado da pior maneira, que os franceses nos tenham invadido por três vezes, que os ingleses nos tenham humilhado profundamente. Em Portugal, a atitude no fundo resume-se a que toda a gente continua a encarar a Espanha com desconfiança, se bem que eu julgue que há alguns sinais de mudança. A União Ibérica não faz sentido nenhum, e eu próprio, que tenho a fama de ser iberista, não vejo que haja qualquer viabilidade nessa ideia. O que me parece, contudo, é que embora o iberismo esteja morto, nós não podemos viver sem um iberismo, uma ideia ibérica. E afinal de contas, se é possível uma ideia europeia, se é possível o maior, porque é que não há-de ser possível o menor?»

Enquanto que você parece recear que muita coisa vai desaparecer da nossa cultura e literatura, ao ler a imprensa portuguesa eu noto que existe um certo contentamento entre os escritores portugueses, um sentimento de dinamismo, ouve-se afirmar com seriedade e frequência que a literatura portuguesa está num auge, que é neste momento uma das grandes da Europa, das mais dinâmicas. Qual é o seu comentário a isso?

«Eu não posso ler tudo aquilo que se escreve por essa Europa, e às vezes a gente faz certas afirmações sem grandes fundamento objectivo, mas enfim, são coisas que começam a ser ditas e a partir de certa altura repetem-se sem sentido crítico, não é? Mas parece que há de facto a ideia de que neste momento, e eu penso que pode haver alguma verdade nisso ouvindo os críticos estrangeiros, a literatura portuguesa, e especialmente o romance, são, talvez, dos mais originais, dos que têm mais interesse. Eu creio que isso é perfeitamente compatível com uma situação de fim, que é esta nossa. Eu não quero entrar pelas metáforas, mas a verdade é que, até a chama duma vela, no momento exacto em que vai extinguir-se, tem um clarão súbito, e depois é que se extingue. Isto não significa, evidentemente, que eu pense que depois deste clarão a literatura portuguesa se extinga. Enfim, não vai acabar, não vai morrer, mas estamos de facto numa altura em que as manifestações literárias talvez não dependam da atitude pessimista ou optimista do autor, mas antes das próprias circunstâncias. Constata-se entre nós uma atmosfera de expectativa. Toda gente hoje fala na Europa, espera coisas da Europa, e essa atitude é muito nossa, porque estamos sempre à espera do que há-de vir de fora, seja o ouro do Brasil, ou o que não chegou a vir de África. Mas a verdade é que por baixo de todo esse aparente optimismo começa a haver também uma preocupação, à qual as pessoas ainda não estão a dar voz. De repente tem-se a consciência de que a Europa não nos dá nada, que a Europa não tem nada que nos dar - e porque é que havia de dar? nós é que temos de fazer o nosso próprio país - então assiste-se agora como que a uma espécie de demissão dos portugueses em relação ao seu próprio país.»

Também por parte dos escritores?

«Os escritores no fundo afastaram-se muito da vida social, da vida política. Viraram muito as costas a todas essas coisas, e estão eventualmente a fazer grandes livros, mas com um ou duas excepções, nunca os escritores portugueses intervieram tão pouco na vida do quotidiano do país, através do artigo, da opinião, da polémica. Nunca aconteceu tão pouco como acontece agora. É um mau sinal. Eventualmente será uma situação transitória, mas é realmente preocupante. Eu acho que não tardará muito a que começaremos a sentir-nos preocupados, já não em relação a toda essa questão da economia, que provavelmente é irreversível, mas quanto às consequências no plano cultural com que de certeza vamos sofrer. E por favor não me falem em consenso cultural europeu, porque isso é coisa que não existe. A cultura europeia não existe. A cultura europeia sempre foi, e felizmente, o conjunto das culturas dos povos da Europa. Isso é que fez a sua riqueza, a sua diversidade, a sua fertilidade. Quando me falam em projectos europeus de vária ordem, no fundo aquilo que eu vejo é que nunca se falou tanto em indústria de cultura. Do ponto de vista tecnocrático a cultura é meramente uma indústria e sob esse ponto de vista a cultura será tanto melhor quanto mais render. E cultura que não rende não tem interesse para as multinacionais, para a banca internacional. De forma que hoje somos meros números dentro dum computador.»
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(*) Traduzida em neerlandês, esta entrevista foi publicada em Amsterdam no matutino  De Volkskrant, a 10 de Março de 1989.
(**) Com o título Memoriaal van het Klooster, a tradução neerlandesa foi editada pela De Arbeiderspers no Outono de 1989.