quarta-feira, dezembro 31

Ilhas

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Com o passar dos anos acontece ao ritual o mesmo que ao dinheiro: perde a valia. E é pouco de recomendar a introspecção nos momentos em que, supostamente, o virar da folha do calendário prenuncia mudanças.
Nada adiantam os beijos e os brindes, pois se algo há de certo e seguro no instante em que mais logo o relógio vai bater as doze, é perguntares-te qual a razão de que o que poderia ter sido não foi, te negaram o que querias, de não receberes o que julgavas merecer.
Mas não te sintas só nem desesperes, esquece o momento. Olha em redor e verás que, teu igual, cada um dos outros também é uma ilha.

terça-feira, dezembro 30

8 de Maio, 1945



 
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= Para o Diário de Notícias, na comemoração dos 150 anos =

8 de Maio, 1945

Sabíamos, já  estávamos habituados, mas mesmo assim, quando aquele trovejar longínquo se anunciava, ia chegando, e durante minutos parecia vibrar em tudo, não era conforto ou esperança o que sentíamos, mas a presença de um poder que ultrapassava a imaginação, tornando-nos indefesos e assustados.
Devem ter sido semanas, meses talvez, desde que quase todas as noites um número sem conta de "Fortalezas Voadoras" passava no céu a caminho da Alemanha, para os últimos  bombardeamentos de cidades como Dresden, Berlim, Hamburgo, onde, segundo os jornais, pouco ficava em pé e os mortos dezenas de milhar.
Era terrível, mas longínquo, fora que, embora sem termos tomado parte, nos sentíamos pertencer aos bons, e o castigo dos maus parecia mais que merecido.
Tem-me sobrado tempo para rever, amaciar e recompor a imagem de mim mesmo nesse tempo: adolescente incrivelmente precoce, quase diria nascido velho, dotado duma desmesurada fome de aprender e viver, insaciável de leitura, curioso de tudo, em ideais  políticos virado para a esquerda, mas já então descobrindo com surpresa e descontento as dificuldades da escolha.
Pouco iria demorar a que a guerra terminasse, havia dias que as "Fortalezas Voadoras" tinham deixado de aparecer, e de súbito,  na noite de 7 de Maio ouviu-se no rádio, foi como se todos os medos findassem e só houvesse lugar para festa e esperança.
No nosso largo, em Gaia, as pessoas tinham saído aos vivas, gritavam palavras incoerentes, os cargueiros fundeados no Douro estavam iluminados, as suas sereias e as das fábricas apitavam sem parar, repicavam os sinos, aqui e ali rebentavam foguetes. Mais do que se via, sentia-se haver nas ruas de Gaia e do Porto uma agitação de festa.
Não me lembro de ter dormido, sei que de manhã corri ao liceu, o Alexandre Herculano, e é como se esteja a ver o grande ajuntamento que se fizera às portas, e oiça a barulheira quando os contínuos vieram dizer que não haveria aulas, o entusiasmo revolucionário com que fomos ao liceu das raparigas exigir em vão da reitora que as deixasse ir manifestar connosco. A Segunda Guerra Mundial poderia ter terminado, mas faltava muito para que se realizasse a igualdade dos sexos, pelo que fomos sem elas para a Praça da Liberdade.
Bem antes de lá chegarmos, porém, as centenas que éramos já se tinham desfeito por entre a multidão, e o que agora recordo perdeu a cronologia.
Ali perto, tínhamos parado, silenciosos junto do edifício da PIDE, ao lado do Cemitério do Prado do Repouso, mas não faço ideia se foi antes ou depois que corri para o Jardim de São Lázaro, que estive aos vivas na Praça dos Poveiros, que descemos a Rua de Santo António cantando a Portuguesa, que cheguei ao mar de gente na Praça da Liberdade.
Havia bandeiras portuguesas, inglesas, francesas, americanas, aqui e ali hastes sem bandeira,  simbolizando a falta da da União Soviética. Embora abafados pelo burburinho de tanto povo  ouvia-se, com os "Viva os Aliados!",  um ou outro "Viva Staline! Viva a Rússia!". Aqui e ali , causando surpresa e susto pelo risco que era, alguns destemidos cantavam o começo da "Internacional": "De pé, ó vitimas da fome, De pé, famélicos da terra".
Vejo-me ir pela Rua de Santa Catarina numa multidão que caminhava de braço dado, rouca dos vivas e gritaria. Lembro ter visto homens a chorar, e de eu próprio chorar também, tomado de uma emoção que tinha menos a ver com o fim da guerra do que com a  esperança  de que findara um tempo de medo, ia haver liberdade e fraternidade, tudo seria melhor.
Nunca mais, em momento nenhum da vida que para mim estava no começo e vai longa, tornaria a experimentar um tal e tão forte sentimento de união, de solidariedade, de pertença a algo imenso, superior, um sentimento que, sem apagar a individualidade, me encadeava a uma força que transcendia o entendimento.
Há muito perdi a conta dos momentos felizes da minha vida, o que é de bom agouro, mas nunca mais, como nessa tarde, uma semana antes de fazer quinze anos, voltaria a sentir o arroubo de me perder numa massa de povo e conhecer a felicidade da pura união.

segunda-feira, dezembro 29

Feliz Ano Novo

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Dois dias mais vem aí a cansativa, geral e automática repetição de votos de Feliz Ano Novo, tão banalizada que desde o confeiteiro à Caixa, do magarefe à Rosinha do quiosque, parece não haver instituição, máquina ou ser humano que não nos deseje bem em particular e ao mundo em geral.
Parece, só que tirante um ou outro voto sincero e sentido, o mais é automatismo, treta, refogado de boas intenções, pechisbeque, ladainha de moinho de orações tibetano.
Claro que me sensibilizam os dos amigos, me comove a sinceridade deste e daquele leitor,  mas votos de Feliz Ano Novo da Coca-Cola Company? Do banco? Do supermercado? Dos pneus Michelin?
 

domingo, dezembro 28

Striptease

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Despimo-nos quando escrevemos. Banal ou não, cada frase é um momento de Striptease, um apelo, uma cedência, um desejo, um grito, por vezes um pedido de esmola, um anseio de carinho.
Pelos jornais passo os olhos, há muito enojado do conteúdo rasca – "Mamas e Cuecas de Cristina Ferreira",  pais violadores, mortos no contramão, idosa assaltada – e no Facebook não entro, o tempo que me sobra dos livros gasto-o, fascinado, na leitura ou na visita de blogues. Demorando nos favoritos, lendo aqui e ali criquices e futilidades, lamentos, choros escondidos, dor funda, poesia sem jeito, para de súbito topar com boa prosa e verdadeira ciência, um poema que alegra, um desabafo que comove.
Quando os anos findam aparecem dessas listas a classificar o melhor disto, o número um daquilo, já no passado as vi de autores de blogues que mutuamente  trocavam elogios e galhardetes. Mas no meu parecer é hora de que um desses académicos que se esfalfam nas análises de Saussure, Barthes, Derrida e Baudrillard, se deite a estudar a blogosfera portuguesa. Cuidando, todavia, em deixar o trigo e o joio. Nada de escolhas, prémios ou separações, pois é a amálgama do bom, do sofrível, do mau, do ridículo e do péssimo que faz o encanto desta destravada  barafunda em que, voluntariamente ou por descuido, mostramos muito do que somos, do que nos diverte e aflige. De facto um Striptease.
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sábado, dezembro 27

Arejar

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Desde ontem caiu a temperatura para quatro abaixo de zero, o vento é quase de tempestade, há no ar um anúncio da neve que vai chegar antes da noite. Gente como eu fecha-se em casa, acende todas as luzes, põe o termostato a vinte e fantasia como será neste momento nas praias do Algarve.
O geral dos holandeses também sonha com o Algarve, mas em dias assim, de frio sibérico, céu cinza e vento cortante, deixa-se tomar por um  estranho e muito nacional masoquismo: vão as famílias dar longos passeios na areia da praia, jurando que quanto mais afiada é a navalha da ventania, mais gozo dá, que fazem aquilo para arejar e nada há que se lhe compare.