segunda-feira, junho 30

Solidão

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Acontece, recorda-se como foi, pouco a pouco vai subindo o desejo de confidência, a vontade de alívio, de pôr fim à opressão do peito e à sarabanda de pensamentos.  E então decide-se pelo silêncio. Cala-se a dor, a desilusão, cala-se a memória do instante em que nos vemos como os outros nos quiseram ver: insignificantes, apagados, perdidos no meio da alegria alheia, desorientados pelo burburinho, esquecidos, invisíveis, postos de lado na festa que parece ser sempre deles, de todos os outros, e onde por rotina ou acidente nos convidaram, um no meio de cem, de trezentos, de mil.
De nada adianta chamar com os olhos, sorrir com os lábios, fazer os mesmos gestos, porque é  facto: a verdadeira solidão, a que dói, ninguém a vê, não tem cura.

sexta-feira, junho 27

O Google


Aprendeu muito, mas aprendeu mal, de forma que o que sabe, armazenado à trouxe-mouxe,  o foi empurrando para a categoria do personagem a quem, no café e festas de aniversário se fazem perguntas esdrúxulas, só  pelo gosto de ouvi-lo responder sem hesitação.
O que é um balaclava? Quem foi Xerxes? O que significa apodítico? Para que serve um escarificador? Como se chama o décimo terceiro mês do calendário arménio? O piranha é um caracídeo?  Quem foi Rasputine?
Mas quase de um dia para o outro as pessoas como que deixaram de se interessar  pelo seu saber, e se esporadicamente alguém lhe faz uma pergunta, ele próprio nota que não é por interesse, antes ironia ou maldade.
Encolhe os ombros, fatalista:
 - Foi o Google. Vão lá e sabem tudo. Julgam que sabem.

quarta-feira, junho 25

Turbilhão


Aconteceu-lhe o incrível. Não perde tempo nem gasta palavras, a surpresa como que lhe cortou o dom da fala e, ainda em choque, a memória tem dificuldade em recordar detalhes, garantir se a loucura foi assim, se foram aqueles os gestos, os olhares.
Sabe que falaram, mas ignora que palavras disseram, as que lhe ocorrem talvez tenham sido ditas antes, depois, ou noutra ocasião. Muito presente tem a visão do belo corpo a abandonar-se na dádiva, a ternura dos seios de menina, o cetim da pele jovem, o momento em que, cerrando os olhos como em transe, ela deixou descair a cabeça no travesseiro e sorriu.
Entregaram-se. Cederam. Deixaram-se ir no turbilhão de surpresas, como se os seus corpos finalmente descobrissem a febre de amar, a que de verdade queima e leva ao delírio, à perda dos sentidos, da consciência; a febre que destrói e liberta; a febre que pára o tempo, arrasa  diferenças, deixa entrever a felicidade.

A cilha

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A cena que o fotógrafo registou algures no Afeganistão, repete a que era corrente na minha infância transmontana: o homem fazendo força para apertar ao extremo a cilha que segura a carga do jerico. Operação desagradável para o animal, mas sem remédio.

terça-feira, junho 24

Sem Internet? Aqui?

Fomos não sei quantos milhares de habitantes desta cidade, que se preza de ser, e é, das mais tecnologicamente avançadas do mundo, a estar sem Internet e sem telefone desde as oito da manhã até por volta das seis da tarde.
Em Estevais de Mogadouro é corrente. Aqui deixou-me desorientado, e augurando mal do que pode acontecer à cabeça do cidadão quando se vê sem possibilidade de comunicar.

segunda-feira, junho 23

Garrafas ao mar


Tenho especial ternura por quem sonha. Na blogosfera sou particularmente atraído por aqueles blogues de mulheres jovens e menos jovens, ilustradas de fotografias quase sempre a preto e branco, de um erotismo doce, acompanhadas de textos curtos das suas vivências e pensamentos, salpicados de citações em inglês, por certo imaginando que desse modo estabelecem uma conotação entre as aventuras reais ou fantasiadas da sua existência, e o mundo onde brilham Angelina Jolie, Scarlett Johansson, Gwyneth Paltrow e semelhantes.
Sinto de facto a ternura que atrás apontei, ao mesmo tempo que se me aperta o coração quando dou largas à fantasia, imaginando legiões de mulheres sozinhas, ou mal acompanhadas, remetendo para a internet  mensagens de amor, descrevendo nelas aventuras únicas ou repetidamente sonhadas, aguardando um bom resultado com esperança igual à dos náufragos que, em ilhas desertas, atiravam ao mar garrafas  com pedidos de salvação.
Tudo por aí são clubes, likes, amigos às dezenas de milhar, paixões mais instantâneas que o caldo Knorr, e contudo, a julgar pelo que vejo, leio, oiço, raramente a dificuldade de existir assoberbou assim a vida de tantos.

quinta-feira, junho 19

Amor, l'amour, amore...

(Clique)
Alguns sabem-no, e ao mundo de facto não interessa, mas aponto aqui o meu descaso por certa poesia, o ballet moderno, a arte abstracta, aquelas piadas a que os crentes chamam instalações, os espectáculos de massa com gente aos pulinhos, os fanáticos de Paul Auster, os que citam Woody Allen, mais uns quantos itens que, alongando o rol, certamente iriam valer-me olhadelas de través e inimizades que de momento não me apetece provocar.
Iniciou esta minha má disposição o folhear acidental de uma revista em que um cavalheiro na casa dos  cinquenta, referindo um poema seu, dissertava sobre os mistérios de Cupido.
Li, olhei o retrato do homem – já em pequeno me avisaram de que quem vê caras não vê corações – reli, mas em vez de uma saudável gargalhada, caí no azedume e desenfreei.
Felizmente, tudo se passou na intimidade das quatro paredes e, estando sozinho em casa, não houve testemunhas da minha fúria nem gravação dos impropérios.
A meio da tarde o acesso tinha passado, e quando há pouco me sentei a escrever este desabafo, dei por mim a sorrir de que ainda haja poetas que, para falar de amor, recorram à fímbria do vestido, ao doce azul do olhar, à serena elegância do passo, aos braços que se enroscam quais serpentes, ao corpo marmóreo, ao sorriso felino, às labaredas da paixão.
Sinceramente me pergunto se, nas minhas orações, devo pedir ao Senhor que se compadeça e me acalme, ou se será melhor que neste e naquele faça secar a veia poética.