segunda-feira, julho 21

Já matei


Desatinado se pode chamar o que mata com veneno, armas brancas, a tiro ou usando o garrote. Quem tem algum senso comete o assassinato perfeito, aquele que não dá cadeia nem  deixa rasto de sangue, e dispensa álibis.
Uma noite, por volta dos quinze anos, matei o meu pai. Não me surpreendeu vê-lo de manhã ao pequeno-almoço a fumar e a ler o jornal enquanto bebia o café. Para mim estava morto, o resto eram aparências.
Por esse tempo matei também a professora de Latim, uma avantesma que, de casaco comprido, tacões rasos, cachecol e chapéu com peninha, recitava frases dos Commentarii De Bello Gallico batendo com o ponteiro no soalho. Foi dum só golpe.
Matei a Emília por crime de lesa-majestade, ao descobrir que tinha trocado a paixão dos meus dezoito anos por um tenente de Cavalaria 7.
O sargento que no Outono de 1949 iria matar no Quartel da Graça, em Lisboa, caiu  instantâneo, nem tempo teve de dar conta da chama assassina do meu olhar.
Depois desse perdi a conta, e se recordo um ou outro, é mais uma questão de pitoresco: a forma como este levantou os braços dizendo-se inocente, a bajulice dum outro caído de joelhos, as lágrimas de crocodilo daquela que me enganou e, ao ver-se descoberta, morte nos olhos, pediu perdão, jurando arrependimento.
A idade acalmou a minha sede de sangue, e o último que matei já lá vão bons anos. Era um merdeiro, humilde de nascença, mas tão convicto da fineza aristocrática do seu espírito que  julgava poder permitir-se extremos de pulhice. Com esse usei o desdém numa única dose.
Fatal como cianeto.