terça-feira, dezembro 30

8 de Maio, 1945



 
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= Para o Diário de Notícias, na comemoração dos 150 anos =

8 de Maio, 1945

Sabíamos, já  estávamos habituados, mas mesmo assim, quando aquele trovejar longínquo se anunciava, ia chegando, e durante minutos parecia vibrar em tudo, não era conforto ou esperança o que sentíamos, mas a presença de um poder que ultrapassava a imaginação, tornando-nos indefesos e assustados.
Devem ter sido semanas, meses talvez, desde que quase todas as noites um número sem conta de "Fortalezas Voadoras" passava no céu a caminho da Alemanha, para os últimos  bombardeamentos de cidades como Dresden, Berlim, Hamburgo, onde, segundo os jornais, pouco ficava em pé e os mortos dezenas de milhar.
Era terrível, mas longínquo, fora que, embora sem termos tomado parte, nos sentíamos pertencer aos bons, e o castigo dos maus parecia mais que merecido.
Tem-me sobrado tempo para rever, amaciar e recompor a imagem de mim mesmo nesse tempo: adolescente incrivelmente precoce, quase diria nascido velho, dotado duma desmesurada fome de aprender e viver, insaciável de leitura, curioso de tudo, em ideais  políticos virado para a esquerda, mas já então descobrindo com surpresa e descontento as dificuldades da escolha.
Pouco iria demorar a que a guerra terminasse, havia dias que as "Fortalezas Voadoras" tinham deixado de aparecer, e de súbito,  na noite de 7 de Maio ouviu-se no rádio, foi como se todos os medos findassem e só houvesse lugar para festa e esperança.
No nosso largo, em Gaia, as pessoas tinham saído aos vivas, gritavam palavras incoerentes, os cargueiros fundeados no Douro estavam iluminados, as suas sereias e as das fábricas apitavam sem parar, repicavam os sinos, aqui e ali rebentavam foguetes. Mais do que se via, sentia-se haver nas ruas de Gaia e do Porto uma agitação de festa.
Não me lembro de ter dormido, sei que de manhã corri ao liceu, o Alexandre Herculano, e é como se esteja a ver o grande ajuntamento que se fizera às portas, e oiça a barulheira quando os contínuos vieram dizer que não haveria aulas, o entusiasmo revolucionário com que fomos ao liceu das raparigas exigir em vão da reitora que as deixasse ir manifestar connosco. A Segunda Guerra Mundial poderia ter terminado, mas faltava muito para que se realizasse a igualdade dos sexos, pelo que fomos sem elas para a Praça da Liberdade.
Bem antes de lá chegarmos, porém, as centenas que éramos já se tinham desfeito por entre a multidão, e o que agora recordo perdeu a cronologia.
Ali perto, tínhamos parado, silenciosos junto do edifício da PIDE, ao lado do Cemitério do Prado do Repouso, mas não faço ideia se foi antes ou depois que corri para o Jardim de São Lázaro, que estive aos vivas na Praça dos Poveiros, que descemos a Rua de Santo António cantando a Portuguesa, que cheguei ao mar de gente na Praça da Liberdade.
Havia bandeiras portuguesas, inglesas, francesas, americanas, aqui e ali hastes sem bandeira,  simbolizando a falta da da União Soviética. Embora abafados pelo burburinho de tanto povo  ouvia-se, com os "Viva os Aliados!",  um ou outro "Viva Staline! Viva a Rússia!". Aqui e ali , causando surpresa e susto pelo risco que era, alguns destemidos cantavam o começo da "Internacional": "De pé, ó vitimas da fome, De pé, famélicos da terra".
Vejo-me ir pela Rua de Santa Catarina numa multidão que caminhava de braço dado, rouca dos vivas e gritaria. Lembro ter visto homens a chorar, e de eu próprio chorar também, tomado de uma emoção que tinha menos a ver com o fim da guerra do que com a  esperança  de que findara um tempo de medo, ia haver liberdade e fraternidade, tudo seria melhor.
Nunca mais, em momento nenhum da vida que para mim estava no começo e vai longa, tornaria a experimentar um tal e tão forte sentimento de união, de solidariedade, de pertença a algo imenso, superior, um sentimento que, sem apagar a individualidade, me encadeava a uma força que transcendia o entendimento.
Há muito perdi a conta dos momentos felizes da minha vida, o que é de bom agouro, mas nunca mais, como nessa tarde, uma semana antes de fazer quinze anos, voltaria a sentir o arroubo de me perder numa massa de povo e conhecer a felicidade da pura união.