quinta-feira, abril 30

Leituras

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Há uma eternidade que um dia comecei a lê-lo, porque mo tinham recomendado e mais de uma vez calhara encontrar referências ao herói. Fiquei-me por umas quantas páginas, desgostado por ser incapaz de apreciar, pois tinha esperado algo no género de Salgari, Júlio Verne, H.G.Wells, e saía-me um herói  atoleimado demais para no começo da adolescência tomar a sério.
Desisti. Todavia, o ter desistido não me impediu de, sabendo vagamente do que se tratava, referir situações quixotescas, citar a luta contra os moinhos, de de vez em quando me valer do fidalgo para ridicularizar um ou outro.
Felizmente ainda conheço ocasiões de redenção e continuo a procurar o que ignoro ou desleixei, de modos que me deitei às quase mil páginas da edução comemorativa da D. Quixote. E em boa hora o fiz, logo cativado pelo texto de Cervantes, pela excelente tradução de Miguel Serras Pereira, e a abundância e riqueza das notas.
Com um entusiasmo que devia ter tido na adolescência vou já no capítulo X, onde se conta Do que mais sucedeu a Dom Quixote com o biscainho e do perigo em que se viu com uma caterva de iangueses.
Por feliz acaso, e porque sempre leio mais do que um livro, tinha também começado a leitura do fenomenal The Narrow Road To The Deep North, (*) de Richard Flanagan (1961) vencedor do Man Booker Prize 2014, quando dei com a frase seguinte, a qual, numa ocasião assim, e pela coincidência, quase me fez pensar que, lá do Além, Cervantes mandou que eu a encontrasse, dando-me motivo para "reler" a minha alma:
"A good book leaves you wanting to reread the book. A great book compels you to reread your own soul".
………..
(*) A Senda Estreita para o Norte Profundo, de Richard Flanagan, é uma edição da  Relógio d'Água.

terça-feira, abril 28

Marketing?

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Marketing? Esperteza? Baixeza? Estupidez? Vassalagem? Talvez tudo isso junto ou um pouco de cada. Parece que existe desde 2008.  Com algum pasmo descobri-a ontem no supermercado.

segunda-feira, abril 27

Razões de queixa

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Com razão ou sem ela, e sobra de motivos reais ou imaginados, chega sempre a hora em que nos queixamos da vida que temos.
Única sobrevivente entre os trinta passageiros e os tripulantes do pequeno avião que em 1992 se despenhou na selva do Vietnam, Annette Herfkens veio a si segurando a mão do namorado e rodeada de cadáveres, incapaz de se mover por ter quebrado ambas as ancas.
Conseguiu arrastar-se pelos cotovelos até uma distância onde deixasse de sofrer o odor da podridão e não visse os vermes que em pouco tempo tinham começado a sair dos olhos de um cadáver ao seu lado. Oito dias sobreviveu sem comida e bebendo água da chuva. No sexto avistou um camponês a certa distância e gritou, acenou, mas o homem desapareceu sem lhe dar ajuda. Viu-o de novo no dia seguinte, olhando-a imóvel. Só à terceira vez apareceu com outros aldeãos, vindo mais tarde a saber-se que não se tinha aproximado por julgar que ele fosse um espírito.
Meses depois, já na Holanda, mas ainda numa maca, pôde assistir ao funeral do namorado, uma bela e comovente cerimónia, "dando-me a impressão de que casava com um morto". O choque viria mais tarde, quando se descobriu que o defunto no caixão era um passageiro inglês, e que, em consequência de um engano, o seu namorado tinha sido cremado na Suécia.
Numa entrevista com o semanário neerlandês Elsevier, donde estes factos são retirados, Annette Herfkens conta ainda como o seu casamento falhou, em consequência de ter um filho autista (*), acrescentando: "A vida torna-se mais fácil quando abandonamos o ego. Graças ao que desde o desastre me tem acontecido, é que me dou conta da beleza da vida."
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Annette Herfkens (1962) estudou Direito em Leiden, é directora do Banco Santander em Nova Iorque e acaba de publicar Turbulence: A True Story of Survival. A fotografia é de Matt Carr.

(*) Segundo uma estatística, isso acontece em 85% dos casamentos com um filho autista.

sexta-feira, abril 24

Os amanhãs não cantam

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O estudo e a experiência demonstram que nunca as revoluções são o que parecem, nem acontecem como as contam. Mesmo depois de por elas terem passados séculos surgem novas versões dos motivos, apresentam os heróis outras faces, por vezes defendendo na realidade o contrário do que apregoam.
Recordo com ternura o meu entusiasmo infantil pela revolta do Primeiro de Dezembro e de como, adolescente, vivi as esperanças da Revolução Francesa, as vitórias de Bonaparte. Escondendo as lágrimas também algumas vezes cantei A Internacional, mas não tardou a que a curiosidade de saber, o estudo, e os olhos bem abertos, fossem gradualmente desgastando o meu entusiasmo e as minhas crenças.
A Segunda Guerra Mundial, que acabaria com todas as guerras, gerou uma atrás da outra; o paraíso soviético não era o que parecia, como os Estados Unidos também não correspondiam à história da carochinha do país grande defensor da liberdade; Cuba não se tornara num paraíso, o Chile de Allende resultou num Pinochet, os generais tomaram conta do Brasil e da Argentina.
Por essa altura tinha eu devotado cerca de dez anos ao estudo da história de Portugal, do Estado Novo, da sociedade portuguesa e, sobretudo, aos acontecimentos e aos personagens que compunham o que se chamava a Oposição.
Resultou daí que se o 25 de Abril me alegrou, em momento nenhum senti entusiasmo, tão-pouco me surpreendeu que a partir da mudança a sociedade e a política passassem a funcionar e a desenvolver-se de maneira para mim previsível. Como também não me surpreende que mesmo agora poucos partilhem o meu desencanto ou a pouca vontade de comemorar.
Reais ou imaginados, uma revolução tem necessidade de episódios dramáticos, heróis,  pais da pátria, e durante décadas, por vezes séculos, tudo isso se festeja com discursos, paradas, estátuas, sessões solenes. Até que a febre diminui e o tempo passa, a visão clareia, os historiadores mostram coragem de pesquisar e escrever como verdadeiramente foi, e por que razões aconteceu.
Mas creio bem que, acerca da Revolução dos Cravos, quando esse dia chegar já nenhum de nós cá estará, talvez até nem aqueles que acabam de nascer.  

quinta-feira, abril 23

Auto-ajuda

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Ninguém precisa da minha compaixão, mas verdade é que me aflige o desespero dos que sem bússola que os oriente na vida, no trabalho ou nos sentimentos, procuram em manuais de auto-ajuda a fórmula milagrosa, o exercício ou a mantra que lhes mostre o caminho do sucesso material, da paz de espírito e da felicidade.
Zombam eles com arrogância dos que acreditam nos efeitos miraculosos da banha de cobra, desdenham dos que rasgam os joelhos em Fátima, chamam burro a quem se deixa guiar pelos símbolos do Tarot, mas de verdade nada os distingue nem torna superiores a esses, antes demonstram que em matéria de crendice não há classes nem escalões, esbracejam todos no vasto mar da ignorância e do medo sem boia de redenção.
Sei eu o remédio? Não sei. Tão-pouco o sabem os psicólogos, os psiquiatras, os padres confessores, os mestres das várias iogas. Porque de facto, quem não possuir a humildade, a imparcialidade e a compaixão de, como se examinasse um estranho, ir ao mais fundo de si próprio, perde tempo, escusa de procurar.

quarta-feira, abril 22

Uma fava!

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Vivemos numa aflitiva, mas também contraditória, preocupação pela privacidade. Fala-se de perigos, ameaças, assaltos, avisam-nos de que constantemente nos escutam, espionam, misteriosas instâncias tudo conhecem do nosso comportamento, dos nossos desejos, das intenções que temos.
Provavelmente assim é, mas também nunca antes na história da humanidade fizemos tanto para que se saiba quem somos, o que queremos, que vícios nos assaltam, que hábitos seguimos, que ódios nos confundem. Exigimos que nos garantam o segredo, o privado, o íntimo, e ao mesmo tempo  tudo fazemos para que nos oiçam, levem em conta, saibam quem somos e onde estamos.
Se num passado recente se viu o Big Brother de Orwell como sinistra ameaça, é curioso notar que entrou pelo espectáculo e, como se nada fosse, a imensa maioria a aceitar e a aplaudir, passou para as redes sociais.
Desejo de privacidade? Uma fava!