sábado, abril 4

O bioco


Vai fazer noventa e três e de nada adianta que nos separem escassos oito anos, para ela continuo o miúdo com quem andou ao colo, viu crescer, apaparicou com doçaria e uvas, cerejas, os figos que ia buscar antes do nascer do sol e me dava fresquinhos, a pingar doçura. Tirou-me uma noite da cama, perdido no sono dos seis ou sete anos, para me levar rua fora até ao estábulo onde a vaca  não demoraria a parir. Que olhasse, e mais palavras não gastou a explicar o mistério do nascimento, puxando carinhosamente as patas da cria, sorrindo ao ver que a mãe começava a lambê-la.
Outras cenas da vida e da natureza me terá explicado, mas a memória tem a crueldade de fazer más escolhas, põe de lado o essencial e guarda o supérfluo. Lembro-a de aguilhada ao ombro, à frente da junta de bois que puxava um carro de sacos de centeio, o chiadouro dos eixos a mostrar que ia ali carga de peso e valor. Vejo-a a encher cântaros na fonte, levando à cabeça faixas de palha, calorenta diante do forno do pão, tecendo fios no mais primitivo dos teares.
Ontem de manhã encontrei-a à porta de casa, sempre o mesmo sorriso de carinho, sempre a doçura do modo de quem compreende e perdoa os pecados do mundo. Uma coisa estranhei, algo de essencial faltava no retrato: pela primeira vez vi-a sem o bioco que, herança sabe Deus de que gotas de sangue árabe ou judaico, sempre lhe tapou a cabeça e por vezes também parte do rosto.
Compreendendo a minha surpresa, alargou o sorriso e apontou os braços:
- Custa-me levantá-los.