sábado, outubro 29

É tudo namoro

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Anos atrás, um poeta holandês que ia radicar-se em Portugal, quis saber de mim se o ambiente seria hostil à sua preferência pelo amor grego. Assegurei-lhe que era infundado o receio, pois a Revolução dos Cravos, fora ter assegurado as liberdades, como que rebentara também as barreiras ao deboche.
Pediu ele então que lhe escrevesse as palavras que na nossa língua referiam o homossexual.
Maricas, panasca, larilas, bicha, os derivados de azeite, de panela, vali-me de Gil Vicente, dos dicionários de calão, e à medida que eu escrevia soletrava ele, preocupado com a pronúncia, mas dizendo-se maravilhado, pois tal abundância vocabular contrastava com a escassez da da sua língua-mãe, em que as palavras nicht e flikker quase cobriam o assunto.
Mas se um outro poeta de igual preferência me fizesse hoje a mesma pergunta, a questão de abundância seria descabida, pois as palavras vão morrendo com a anemia do politicamente correcto, gay e namorado/a são o cânone.
Dá-se o caso de que o país inteiro namora. Desapareceram nele as amantes, as teúdas e manteúdas, as amásias, as concubinas, os cornos, os gigolôs. Anda tudo asséptico, mole, escovadinho, valem os crimes passionais para irmos mantendo algum sentido da realidade.

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Publicado no CM.

sexta-feira, outubro 28

Na barbearia

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A propósito do que vai por aí, dos que mentem, dos que se desdizem, se escondem, se retractam, fogem com o rabo à seringa, retiram comprometedoras páginas dos seus blogues, dizem que não sabiam, não foram eles, que as coisas mudam, que o tempo o dirá, cite-se o provérbio turco de antiga e oriental sabedoria: "Quando estiveres a ser barbeado, mantém-te quieto".  

sexta-feira, outubro 21

Mudanças e melhorias

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Num programa da televisão holandesa, Maurice de Hond, o especialista das previsões eleitorais, anunciava a semana passada a sua intenção de se abster de votar, e a necessidade que há de, para manifestarem a sua vontade, os cidadãos venham a possuir instrumentos mais eficientes do que o voto.
Emocionado, argumentava a impotência e a irritação que sente ao votar num partido da sua escolha, e dar-se conta que, chegado ao poder, esse partido alegremente esquece as solenes promessas do programa eleitoral, tomando por vezes decisões bem diferentes ou mesmo opostas. É, afirmava ele, uma forma de trafulhice a que se deve por cobro, talvez por intermédio de referendos, avaliando a prazos regulares em que medida um governo eleito cumpre o prometido.
Nos países onde é elevada a consciência política, a sociedade não descarta a priori as possibilidades de mudança e mostra-se geralmente favorável à análise do que possa conduzir a melhorias. 
Mas melhorias e mudanças não estão no programa dos malfadados países onde as leis são para violar, as dívidas para esquecer, o bolo é duns quantos, o resto vive de mão estendida, temendo o amanhã.


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Publicado no CM

segunda-feira, outubro 17

Ares de leão

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É interessante vê-lo quando chega ao café: a porta abre-se e durante dois ou três segundo nada acontece, a pausa teatral antes do galã apare­cer no palco.
Surge então, grande, pesado, a cabeça leonina erguid­a, os olhos flamejantes. Entra, roda sobre si mesmo a fechar a porta, cumprimenta este, acena a outro, a passos medidos procura uma mesa.
Escreve, pinta, canta, represen­ta, esculpe, compõe, é pianista talentoso, realiza performan­ces, vê-se com fre­quência na televisão, ouve-se com fre­quência na rádio. Raro passa semana sem que num ou noutro jornal não apareça escrito seu, ou não se fale das suas muitas acti­vidades.
Verdadeiro furacão que é causa ciúmes, e já me tenho perdido a sonhar sobre que extraor­dinário poder pos­sui quem realiza tanto, no mesmo tempo em que eu tão pouco faço.
A minha inveja, porém, vai menos para o que ele faz, do que para o modo como se mostra. Eu francamente gostaria de saber entrar assim no café, vestido de preto, o grande cachecol vermelho enrolado no pes­coço, cabeça ao alto, e aquela esplêndida segurança de si mesmo.
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Publicado no CM e aqui.