quarta-feira, janeiro 25

Santa Apolónia

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Era outro assunto, mas a frase escapou-lhe e a confidência veio assim, um desabafo inesperado, a melancolia de mistura com o desalento e as decepções da maternidade, da vida de casada, da juventude perdida, do suceder monótono dos dias.
Domingo de manhã. Sete e meia. Acordaram e continuam imóveis, os corpos não se tocam, um instante depois ele levanta-se, espreguiça-se, sai do quarto. Ela abre os olhos. Incomodada pela claridade do dia volta a cerrá-los, imita mentalmente o tom com que ele anuncia sem a encarar: - Vou ver os miúdos.
Claro que também ela ama os pequenitos, sofre com os achaques, se assusta com as pontas de febre, as tosses, aflige-se quando não comem ou os vê chorar sem razão que adivinhe. É mãe, sente-se mãe, mas foi sendo subtilmente empurrada para fora do território onde o Alberto e a sogra dispõem e regulam.
Estranha metamorfose. Era todo de desporto e festas, mas ao tornar-se pai quase que de um dia para o outro se transformara num ser quezilento, preocupado com ninharias. Ele, que nunca tinha levantado um dedo, lavava agora a loiça, limpava o pó, arranjava os armários, acomodava a roupa, ia ao supermercado, mudava as fraldas, preparava as papas, ouvia-o combinar com a mãe, aos risinhos, idas à praia, passeios ao Zoológico.
- No sábado vamos ao Cirque du Soleil. Dizes sempre que detestas circos, se calhar não queres ir. Ou queres?
Respondia-lhe com um aceno e pegava nos cigarros, saía para a varanda, os miúdos a bater nas vidraças, ele, paciente e muito pedagógico, a explicar que o tabaco era um veneno, teriam de esperar até que a mamã apagasse aquela porcaria.
Ouve-o entrar no quarto de banho. Era diferente, mas tornou-se homem de hábitos e a manhã de domingo é hora de sexo.
Ela própria se surpreende da rapidez com que se veste. Apanha a mala, leva os sapatos na mão, ouve os filhos a rir de qualquer coisa que a sogra cantarola. Fecha a porta sem ruído e não espera pelo ascensor, desce as escadas a correr. Olha o relógio num automatismo. Oito e vinte.
No táxi hesita um momento, mas logo decide:
- A Santa Apolónia, se faz favor.